Carta aberta da Rede Nacional de Proteção de Jornalistas e Comunicadores aos financiadores de comunicação e jornalismo na região Norte

Durante os dias 26 e 27 de março, diversos profissionais de comunicação da região Norte, entre comunicadoras e comunicadores populares, jornalistas, radialistas, blogueiros e fotojornalistas estiveram em Manaus (AM) dando início ao ciclo de formações regionais promovido pela Rede Nacional de Proteção de Jornalistas e Comunicadores (RPJC). Gerenciada pela ARTIGO 19 e pelo Instituto Vladimir Herzog, a Rede é fruto de uma articulação entre organizações da sociedade civil e pessoas jornalistas e comunicadoras de todo o Brasil, a fim de nortear mudanças efetivas no que diz respeito ao fomento e proteção desses profissionais.

Entre os temas debatidos, a sustentabilidade financeira de iniciativas de comunicação do Norte foi um dos pontos centrais do encontro. “A violência financeira segue como prática recorrente do colonialismo” — assim foi definida a forma com que veículos, coletivos e organizações participantes avaliaram a situação que vivenciam diariamente quando o assunto é captação de recursos. A filantropia e a oferta de recursos via editais não têm dialogado com a realidade geográfica, social e econômica da região. 

Com o objetivo de respaldar as discussões realizadas durante o encontro, os membros da Rede de Proteção elaboraram a “Carta aberta da Rede Nacional de Proteção aos financiadores de comunicação e jornalismo na região Norte”. Esse é um material que visa apresentar as problemáticas e possíveis soluções para que os critérios de financiamento possam ser mais inclusivos, equitativos e sensíveis às necessidades e realidades das organizações de comunicação no Norte do Brasil. 

Rede Nacional de Proteção de Jornalistas e Comunicadores – 2024

CARTA ABERTA AOS FINANCIADORES DE COMUNICAÇÃO E JORNALISMO NA REGIÃO NORTE

Como é ser um comunicador do Norte do Brasil?” é a pergunta que nos traz até aqui. Simples seria se apenas respondêssemos com “é um grande desafio” ou até mesmo com “é difícil, mas a gente segue resistindo”. Infelizmente, essa não é a resposta que podemos dar, apesar de também ser verdade. Não há como responder essa pergunta sem contextualizar, mais uma vez, que estamos falando de um território imenso, heterogêneo e que abriga diversas particularidades, como por exemplo, a maior floresta tropical do mundo e a região com a maior concentração de povos indígenas no país.

Trabalhamos em uma região marcada por violentas disputas territoriais, sociais e ambientais que são resquícios vivos do colonialismo e do racismo. Trabalhamos em uma região em que a invisibilidade e a perseguição aos saberes tradicionais e locais costuma ser a regra. Trabalhamos em uma região controlada por um monopólio de veículos que dificulta o acesso das comunidades a informações públicas. Também trabalhamos em uma região em que as políticas privilegiam o agronegócio, a pecuária, o garimpo e grandes projetos de infraestrutura como hidrelétricas, exploração de recursos minerais, gás e petróleo, além de ser um território com grande presença de organizações criminosas e milícias. 

Ou seja, não é fácil e muito menos simples ser um comunicador amazônida. A comunicação que nos propomos a fazer é atravessada por todos esses fatores, o que torna a insegurança uma realidade praticamente diária — especialmente para mulheres comunicadoras, pessoas negras, indígenas, quilombolas, LGBTQIAPN+, trabalhadores rurais, agricultores familiares, pescadores, extrativistas, ribeirinhos, piaçabeiros, peconheiros, marisqueiros, seringueiros, castanheiros. 

Além de nos preocuparmos com nossa segurança física, tendo muitas vezes que deixar de cobrir uma pauta porque os riscos de vida são extremamente altos, ou com o aumento de casos de assédio judicial promovidos por políticos e grandes empresários, temos um gargalo que também fragiliza muito a nossa atuação profissional: a violência financeira. Foi assim que definimos o que nós, profissionais da comunicação da região Norte e que integram a Rede Nacional de Proteção de Jornalistas e Comunicadores, vivemos quando o assunto é sustentabilidade, financiamento e recursos. A necessidade de acumular trabalhos remunerados para sustentar nossas iniciativas muitas vezes resulta na sobrecarga de trabalho e consequências irreparáveis para nossa saúde, bem-estar e excelência em nossas atividades.

Como promover uma comunicação independente, de qualidade e que se sustente a longo prazo se os raros recursos que chegam até nós não condizem com a nossa realidade de trabalho? A tentativa que vemos acontecer de descentralizar ações na região Sudeste e Centro-Oeste, especificamente no eixo São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, não tem sido efetiva a partir do momento que os critérios de financiamento, incluindo a própria quantia destinada, que buscam fomentar o jornalismo do Norte inviabilizam a nossa própria aplicação. 

Entendemos a necessidade de transparência orçamentária. Mas, para muitos de nós, a burocracia excessiva tem sido um obstáculo significativo para acessar recursos vitais. Por exemplo, grande parte dos editais solicita obrigatoriamente notas fiscais ou recibos como forma de controle de orçamento. Em grande parte dos projetos isso não é uma prática viável seja na concepção, desenvolvimento ou encerramento da proposta. Como vamos exigir que um motorista ou alguma liderança local emita uma nota fiscal para que possa receber seu pagamento se muitas vezes essas pessoas não possuem um castrado MEI? É necessário reavaliar os critérios exigidos nos relatório financeiros a fim de tornar possível a aplicação e a entrega final dos projetos.

Além disso, há diversas iniciativas que não possuem um CNPJ. Alguns editais chegam a incluir a modalidade de coletivos não formalizados, mas, ainda assim, sempre ofertam um valor muito inferior comparado a organizações que são formalizadas. É importante compreender que a “burocratização” não inferioriza a qualidade da atuação dessas iniciativas e que, muitas vezes, não possuem a opção ou enxergam a necessidade de formalização apenas para se encaixarem em determinados formatos de financiamento. É preciso que os financiadores considerem que esses grupos precisam destinar uma parte do valor para direcionar a outras organizações parceiras que irão fazer a gestão financeira, por exemplo

Outro ponto que nos preocupa é sobre o perfil dos contemplados pelos editais. Nos últimos anos, houve um “boom” de projetos de financiamentos para cobrir os territórios amazônicos. O problema disso é que os recursos acabam sendo destinados para organizações que, em tese, atuam na Amazônia, mas na prática são compostas por pessoas brancas que não estão no território e, às vezes, nem no Brasil. Os recursos também costumam contemplar apenas veículos de grande porte, redações fora do país (incluindo até mesmo recomendação prévia de veículos internacionais já na inscrição) ou pessoas já renomadas, enquanto o jornalismo independente e as iniciativas emergentes enfrentam dificuldades adicionais para obter apoio financeiro. Para romper com esse ciclo que perpetua uma lógica colonial mostra-se evidente a urgência de priorizar profissionais locais

A quantidade de verba que os editais oferecem é outra questão que não condiz com a nossa realidade. Quando falamos de gastos para fazer uma reportagem na Amazônia não estamos falando apenas do salário de nossas equipes e equipamentos, mas de uma questão geográfica que envolve grandes deslocamentos extremamente caros, como a própria gasolina, de carros, embarcações e via aérea, assim como de recursos que garantam a nossa segurança física. É crucial que os financiadores levem em consideração a realidade social e econômica da região, assim como disponham de verba para lidar com situações emergenciais de violência contra pessoas comunicadoras e jornalistas e também para proteger pessoas ameaçadas em seus territórios

Como já pontuamos anteriormente, é difícil pensar na sustentabilidade financeira a longo prazo quando raramente os editais são voltados para manejar a gestão administrativa e interna das iniciativas. Alguns editais, além de pedir CNPJ, requerem contrapartida financeira como critério para receber os recursos e ainda deixam claro que não pagam taxas e impostos extras como ICMS, ISS e INSS, se for o caso. Outra forma de garantir a autonomia das iniciativas e preservar a sua sustentabilidade é ofertar um overhead, um taxa mínima administrativa, para além da verba total destinada para a produção do projeto. Dessa forma, as organizações poderão custear ações institucionais ou criar fundos que possam subsidiar outros projetos que não tenham recebido financiamento.

Esperamos que estas preocupações sejam consideradas com seriedade e que possamos trabalhar juntos a partir de critérios de financiamento mais inclusivos, equitativos e sensíveis às necessidades e realidades das organizações jornalísticas no Norte do Brasil. 

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