A Rede Nacional de Proteção de Jornalistas e Comunicadores é fruto de uma articulação entre organizações da sociedade civil com jornalistas e comunicadores de todo o Brasil. Encabeçada pelo Instituto Vladimir Herzog e pela ARTIGO 19, em parceria com outras organizações de liberdade de expressão, imprensa e proteção a jornalistas e comunicadores, a iniciativa pretende combater o avanço dos ataques e das ameaças à liberdade de expressão, por meio do recebimento de denúncias de casos de violência, de processos de formação e de estratégias para garantir a participação de diferentes pessoas, coletivos, organizações e instituições que podem e devem contribuir com a segurança dos/as profissionais da imprensa, que são essenciais ao Estado Democrático de Direito brasileiro.
No entendimento da Rede, qualquer pessoa que esteja regular ou profissionalmente envolvida na coleta e divulgação de informação ao público, por qualquer meio de comunicação, seja comercial ou não comercial, pode ser considerada comunicador/a. Estão abrangidos/as, portanto, repórteres, blogueiros/as, radialistas, comunicadores/as populares ou comunitários/as, profissionais de mídia entre outros/as.
Nos dias 9 e 10 de fevereiro de 2023, em São Paulo (SP), a Rede Nacional de Proteção de Jornalistas e Comunicadores realizou o I Seminário de Mulheres Comunicadoras, reunindo cerca de 60 comunicadoras de todo o Brasil, de todas as regiões e praticamente todos os Estados da federação. Em grande parte, mulheres negras, indígenas, quilombolas, de comunidades e povos tradicionais, bissexuais e lésbicas, trans e travestis, do campo, da cidade, de favela, sem teto, sem terra, mulheres de axé, ativistas e de muitos outros lugares que expressam suas vozes.
Neste encontro nasceu a “Carta aberta das mulheres comunicadoras da Rede Nacional de Proteção de Jornalistas e Comunicadores”, que é um material valioso para a orientação da construção de políticas efetivas para mulheres comunicadoras, bem como para conscientização e aprimoramento de conhecimentos sobre a realidade destas mulheres.
Rede Nacional de Proteção de Jornalistas e Comunicadores
2023
CARTA ABERTA DAS MULHERES COMUNICADORAS DA REDE NACIONAL DE PROTEÇÃO DE JORNALISTAS E COMUNICADORES
“O que é ser mulher comunicadora?”, nos perguntaram. Respondemos que além de simplesmente “mulheres que se comunicam”, somos também vozes que incomodam e desafiam. Durante a pandemia, levamos informação às nossas casas, às de nossas vizinhas, irmãs e companheiras, por todos os meios necessários. Em nossas atividades, construímos narrativas sobre a potência das mulheres, e ajudamos outras como nós a se entenderem como seres humanos, de direitos, às quais é devida a dignidade. Enfrentamos a mídia tradicional e as formas corriqueiras de se representar mulheres, que partem de estereótipos que nos diminuem e restringem nossas possibilidades. Cuidamos de nossos familiares, amigos, colegas e somos, em muitos casos, pilares de nossas comunidades e territórios. Desenvolvemos, nessas relações, novas formas de comunicação e de garantia que informações de qualidade cheguem a todas e todos que estão nos nossos arredores.
Nossas formas próprias e particulares de comunicação – que se multiplicam ainda mais quando somos mulheres negras, indígenas, de axé, quilombolas e de outras comunidades tradicionais -, muitas vezes são menos consideradas, ou não incluídas no âmbito da “imprensa” e da “disseminação de informações de interesse público”. Assim, destacamos que, ao se falar em políticas e estratégias voltadas para mulheres comunicadoras, há que se observar a multiplicidade de nossas formas de registro, memória e comunicação (como é, por exemplo, oralidade e a comunicação visual simbólica em terreiros e ilês, quilombos e terras indígenas). Estas foram também apagadas pelo histórico de exclusão e discriminação que marca o nosso país.
Se mulheres já sofrem com a violência, com o descaso das instituições e da sociedade cotidiana, e historicamente, como comunicadoras, somos duplamente atingidas, simplesmente por sermos mulheres que levantam suas vozes. Se somos, então, mulheres negras, indígenas, quilombolas, de axé, ribeirinhas, LBTQIAPN+, de favelas e periferias, mais novas ou mais velhas, de territórios historicamente marginalizados pelo Estado, somos tripla, quádrupla, quintuplamente atingidas. Se, somado a qualquer desses fatores, ousamos defender direitos humanos e fundamentais – e, especialmente, direitos das mulheres e de outros grupos vulnerabilizados pelas políticas de exclusão – o cenário se agrava ainda mais.
Nosso testemunho coletivo aponta para muitos casos de violações contra nossos corpos e mentes, e de nossas famílias, comunidades e territórios. E, nesses últimos anos, o desmonte das políticas públicas voltadas às mulheres só vulnerabiliza cada vez mais a condição das mulheres e de sua proteção, nas dimensões individual e coletiva.
Ao falarmos da nossa proteção e da garantia da nossa liberdade de expressão, frequentemente nos perguntamos: Nós protegemos, mas quem nos protege? Nós acolhemos, mas quem nos acolhe? Nós cuidamos, mas quem cuida de quem cuida? Essas perguntas aparecem uma vez que somos, na maioria dos casos, a espinha dorsal de nossas famílias, comunidades e territórios, ou ao menos desempenhamos o papel fundamental de levar e trazer informações de interesse de todas e todos. Em contrapartida, nossos corpos são os primeiros atingidos, nossas vozes são as primeiras a serem caladas, de formas que ameaçam a existência de todas as pessoas ao nosso entorno. Se não estivermos protegidas, aqueles que correm conosco também não estarão.
É contraditória a posição das mulheres comunicadoras no Brasil: se por um lado, somos profundamente atravessadas por diversas formas de violência e de silenciamento, por outro, somos essenciais à garantia de estruturas comunitárias, bem como dos direitos que fundamentam o próprio Estado Democrático de Direito brasileiro. Lembramos, nesse sentido, a importância da luta da imprensa feminista e das mulheres no enfrentamento à ditadura militar brasileira (1964-1985). Essas mesmas mulheres guardam até os dias de hoje marcas profundas das violações promovidas pelo Estado, e seguem lutando para contar a verdadeira história do nosso país. Nessa época, os jornais “O Brasil Mulher” e “Nós Mulheres”, foram feitos na clandestinidade. Amelinha Teles, nossa referência política, que também participou do Seminário de Mulheres Comunicadoras, conta de que modo foi violada e violentada, simplesmente por ser uma mulher que ousava levantar sua voz contra o regime autoritário.
Os anos passaram, a democracia chegou, mas o cenário segue sendo grave para nós. É histórica a exclusão das mulheres dos espaços de comunicação. Inclusive porque, ainda hoje, o Brasil não conta com uma política consistente de mídia que atravesse discussões de gênero, ainda que existam alguns exemplos positivos em outros âmbitos. Nesse sentido, as políticas voltadas para comunicação, em todos os âmbitos, devem observar o combate ao sexismo e às representações distorcidas, estigmatizadas, estereotipadas e sexualizadas de mulheres, especialmente de mulheres negras, indígenas, quilombolas, de outras comunidades tradicionais e LGBTQIAPN+. Ainda, a comunicação pública e/ou com financiamento público deve obrigatoriamente contar com conteúdo voltado para e construído por mulheres, com perspectiva de etnia/raça, idade, classe, orientação sexual, território etc. A pauta da democratização da comunicação, nesses termos, deve ter gênero e suas intersecções como aspecto central e direcionador das ações propostas, e das políticas e legislações formuladas a esse respeito.
As políticas e legislações existentes não atendem propriamente às necessidades das mulheres comunicadoras. Isso porque as políticas de proteção, financiamento e de representação e representatividade, em geral, não são construídas a partir de reflexões sobre os impactos específicos das violações à liberdade de expressão e das violências contra mulheres comunicadoras. Dessa forma, consideramos imprescindível à real garantia da liberdade de expressão no Brasil a formulação e execução de políticas que estejam atentas à realidade concreta vivida por mulheres, em suas diferentes trajetórias e contextos, respondendo às necessidades que temos.
Destacamos algumas políticas existentes em diferentes esferas da federação, que devem se atentar para estes pontos: o Programa de Proteção a Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH) à nível federal, e as políticas estaduais que têm o mesmo objetivo, as políticas de combate à violência contra a mulher dentro e fora do ambiente doméstico, as políticas e editais de fomento de financiamento de atividades relacionadas à cultura e à comunicação; e as políticas afirmativas em veículos e coletivos de comunicação, bem como as que são voltadas para o combate ao assédio e à violência nestes ambientes. Essas não devem limitar a participação, o ingresso e o atendimento de mulheres comunicadoras, e sim contar com profissionais preparadas para nos atender e entender nossas especificidades de atuação e contexto. Nesse sentido, medidas de proteção que envolvem o afastamento do ambiente de trabalho e de coberturas relevantes, ou o afastamento do território, e a responsabilização das próprias mulheres comunicadoras pelo assédio e pela violência sofrida, são absolutamente descabidas para nossas realidades e devem ser revistas.
Adicionalmente, para conseguir nos comunicar, temos que manter um ou dois empregos, além das jornadas extras de trabalho com família, afetos e comunidades, que, como destacamos, em muitos casos dependem de nós. Outras vezes, relatamos o desinvestimento da produção de determinados conteúdos, especialmente quando produzidos por mulheres – como é o caso das coberturas ambientais e sobre as violações contra povos e comunidades tradicionais, especialmente na região amazônica e no cerrado brasileiro. É preciso pensar em políticas que garantam a visibilidade de conteúdos produzidos por mulheres, bem como de seus veículos, coletivos e grupos de comunicação, além de ampliar as políticas de fomento e garantir que estas atendam especialmente às mulheres. Adicionalmente, estas políticas devem sempre contar com um forte componente de valorização do trabalho territorializado, produzido por aquelas que vivem as realidades contadas. Por isso reivindicamos também a concessão de Rádio e TV Comunitárias, com recorte de gênero.
Nesse contexto, a deslegitimação do nosso trabalho, que tem forte viés de gênero, também tem nos impedido de acessar e ocupar jornais de grande circulação e visibilidade, além de criar dificuldades dentro do mercado e das relações de trabalho, inclusive por episódios de violência física e sexual, e a impedir que nossos veículos, coletivos e formas de comunicação sejam preservados e possam continuar existindo. Nós somos constantemente xingadas, ridicularizadas, ofendidas, além de recebermos diversas ameaças contra nossas vidas e de nossos familiares, bem como ataques racistas, lesbofóbicos, gordofóbicos, transfóbicos, com cunho de intolerância religiosa e sexualizantes. Também somos taxadas de incompetentes ou tratadas como se fossemos incapazes de falar sobre assuntos de interesse público, o que impacta diretamente na possibilidade de sobrevivência dos nossos meios de comunicação, visto que estas categorizações obstruem nossos financiamentos e o acesso e consumo de nossos conteúdos pelo público. Piorando esse cenário gravemente, nos últimos anos, passamos a sofrer esses ataques também tendo por agressores agentes públicos e políticos de grande visibilidade, que incentivam seus seguidores e apoiadores a reproduzirem as práticas violentas. É urgente que se elaborem políticas que legitimem nosso papel, por meio principalmente de conscientização social sobre a importância da imprensa, da comunicação popular e comunitária, e da ocupação destes espaços por mulheres comunicadoras, combatendo os efeitos nocivos destas práticas e inibindo novos ataques.
Nos últimos anos, as redes sociais e espaços virtuais se tornaram o principal palco dessas violações e episódios de deslegitimação. Muitas de nós temos nos afastado destes espaços, que são tão essenciais ao exercício da comunicação, hoje. É necessário que as plataformas e as políticas que visam sua regulação se atentem para o crescente discurso de ódio nas redes sociais e nos meios virtuais, assim como que as instituições de investigação e judicialização estejam prontas para nos acolher e levar nossos casos com a seriedade devida. Leis que tratam especificamente deste tema, como a Lei Lola (Lei 13.642/18), nomeada em referência a uma companheira comunicadora que sofreu ataques massivos nas redes sociais, devem ser executadas propriamente e disseminadas para que todas tenhamos conhecimento dos instrumentos legais existentes para o nosso amparo.
Frequentemente, buscamos a responsabilização dos agressores e agentes das violações, e somos recebidas de forma absolutamente imprópria pelas autoridades, e por vezes até ameaçadas e silenciadas por elas. Também a respeito da investigação e judicialização das violências praticadas contra nós, deve se levar em consideração que o exercício da comunicação e a atuação na defesa dos direitos das mulheres são fatores centrais da violência, e devem fazer parte das linhas investigativas e de encaminhamento de resoluções, nunca privilegiando alternativas e composições que acabem por afastar mulheres da comunicação. Em alguns casos, nossas denúncias são usadas contra nós, e também se tornam inquéritos, processos e geram consequências profundas para nossas atividades. Todas as medidas legais que visam a promoção da justiça precisam, ao observar nossos casos, ter em primeiro plano o direito à liberdade de expressão como direito fundamental a ser protegido. Ainda, o Estado brasileiro deve também se atentar para as denúncias de violência feitas à comunidade internacional, que por vezes acaba sendo o último recurso para que comunicadoras e comunicadores tenham reconhecidas as violações ao seu direito de se expressar.
As violências praticadas contra nós são múltiplas e multifacetadas. Por isso, em todas essas esferas é muito relevante que sejam promovidas ações, políticas públicas com financiamento e implementação de medidas de proteção e segurança holística, abrangendo desde a proteção física, até a digital, psicológica, reputacional, entre outras.
Para a implementação de todas estas recomendações, avaliamos ser necessário o uso de aparatos públicos, privados e da sociedade civil para a produção de dados sobre as violências praticadas contra mulheres comunicadoras. Há hoje, não só uma vasta subnotificação dessas violências (também, pela postura inadequada das autoridades frente aos nossos casos), mas também um cenário grave de ausência de informações consistentes sobre o tema. Neste sentido, espaços como o recém criado Observatório da Violência contra Jornalistas e Comunicadores, no âmbito do Ministério da Justiça, deve garantir que o registro e publicização de informações também seja perpassado pelas categorias de gênero, raça e outras expressões de diversidade das comunicadoras e da comunicação.
Como reiteramos diversas vezes, nós, comunicadoras, na maioria das vezes, somos as principais cuidadoras da nossa família, filhos/as, da nossa comunidade, bairro ou território. Sendo ou não mães, somos atravessadas pelo trabalho reprodutivo, ou trabalho do cuidado. Independente da maternidade, ou da intenção de ser mãe ou de não ser, o que é comum a todas nós é a invisibilidade que se dá ao trabalho não pago de cuidado que realizamos. Este não está só em nossos espaços familiares e de afeto, mas também nas emissoras, revistas, jornais, instituições, empresas, organizações ou coletivos. É necessário e urgente o debate público sobre trabalho de cuidado e justiça reprodutiva. As violações, a invisibilidade e o desrespeito com a maternidade, dentro e fora do ambiente de trabalho, são comuns nas nossas narrativas. As ameaças direcionadas a nossos filhos e entes queridos também. O desmonte das políticas relacionadas à maternidade e aos direitos sexuais e reprodutivos tem impactos diretos na nossa vida e cotidiano, e na nossa possibilidade de nos comunicarmos livremente.
Também é comum que as violências praticadas contra nós, em razão da nossa posição de comunicadoras, venham em razão de denúncias e conteúdos relacionados a estes temas. Assim, a cobertura sobre direitos das mulheres, direitos sexuais e reprodutivos, e violência contra as mulheres, nos tornam alvos preferenciais daqueles que buscam apagar nossas narrativas. O mesmo ocorre contra aquelas de nós que denunciam violência em seus territórios e comunidades, principalmente quando estas têm caráter racial, étnico ou territorial. Isso expressa a intenção destes ataques, quais vozes, narrativas e memórias eles querem calar. No entanto, mesmo dentro de tamanho quadro de adversidade e violência, seguimos levantando nossas vozes contra aquilo e aqueles que nos marginalizam, excluem e agridem. Agradecendo às irmãs comunicadoras que pisaram nesse terreno arenoso antes de nós e nos deram passagem, seguiremos escrevendo as histórias de e para mulheres brasileiras.
NÃO HAVERÁ LIBERDADE DE EXPRESSÃO ENQUANTO MULHERES FOREM SILENCIADAS!
Imagem: Rede Nacional de Proteção de Jornalistas e Comunicadores